Herundino Ribeiro do NASCIMENTO FILHO1, Reinaldo Imbrozio BARBOSA2, Francisco Joaci de Freitas LUZ
Dos 180 acessos de pimentas (163 de espécies
domesticadas) coletados em Roraima no período de maio/2000 a junho/2001, foram
identificados 78 morfotipos que se diferenciavam pela forma, cor e ardência
(Barbosa et al., 2002). Destes, 23 foram observados especificamente para etnias
indígenas: Wapixana (10), Macuxi (9), Patamona (1), Yanomami (1) e Yekuana (1).
Nestas comunidades, os morfotipos predominantes foram malagueta (C.
frutescens), murupi (C. chinense) e olho-de-peixe (C. chinense). Devido ao
esforço de coleta ter sido mais intenso entre as comunidades Macuxi e
Wapichana, este resultado acaba refletindo uma situação muito simplificada dos
morfotipos utilizados pelas etnias locais, observando-se principalmente aquelas
que vivem nas regiões de vegetação aberta denominadas regionalmente por
“lavrado” - savanas/cerrados (ver Barbosa & Miranda, 2005)
A coleta de pimentas nas etnias indígenas
presentes no ecossistema de florestas foi muito reduzida devido a problemas de
acessibilidade. Todavia, tanto as poucas coletas que obtivemos, quanto os
relatos passados, nos dão conta do uso de pimentas nestas localidades como, por
exemplo, nos trabalhos de Milliken (1997) entre os Yanomami do oeste de
Roraima, e Meggers (1987) nos Waiwai, do sudeste.
Por ocasião das observações nas aldeias do
lavrado, foi constatado que, em sua maioria, existia a figura da “pimenteira”.
Este termo denomina uma ou mais senhoras (ou famílias) que se dedicam ao
cultivo, manipulação e distribuição das pimentas na aldeia e/ou região. Na maior
parte das vezes, estas senhoras também se responsabilizam pelo fabrico e
comercialização de molhos e pimentas desidratadas/moídas (jiquitaia). Neste
caso, entenda-se comercialização como o ato de venda ou troca dentro e fora da
aldeia. Não é um papel definido somente pela comunidade, entretanto, estas
senhoras (pimenteiras) acabam assumindo esta figura através da leitura que a
comunidade faz de seu prazer pessoal no plantio e tratos hortícolas de seu
jardim doméstico.
Do ponto de vista cultural, as pimentas podem
assumir diferentes formas simbólicas refletidas diretamente em sua forma de
uso. Por exemplo, para os Macuxi, situados no centro-norte e nordeste de
Roraima, andar no mato com fome e sem pimenta é muito perigoso, pois isto pode
levá-los a ser atacados pelos espíritos das matas.
Na Aldeia Maturuca, o professor da escola
indígena local (Prof. Sobral André, índio Macuxi) nos informou que naquela
localidade as pimentas são usadas para fazer molhos à base de tucupi (escorrido
da macaxeira), além do caldo (damorida) e da jiquitaia. A jiquitaia é
geralmente preparada primariamente pela secagem da pimenta ao sol ou torrada no
forno ou na pedra. Em seguida ela é moída em pilão e, na formulação atual, é
adicionada uma quantidade variável de sal, muito embora antes do contato com o
“... branco... ” este último ingrediente não existisse. “Também se usa pimentas
para espantar os maus espíritos ou feitiços ... espíritos da natureza que nós
acreditamos que fazem mal” (Prof. Sobral André, índio Macuxi).
Os benzedores (pajés) utilizam as pimentas
para curar doenças que só eles possuem o poder de tirar. Os pajés Macuxi,
quando “... atuados ...” (em transe), usam pimentas em seus ritos, mas não
conseguem se lembrar de quais e nem de quanto usaram nas composições indicadas aos
doentes quando despertam do transe.
Entre os Macuxi, ao se doar uma pimenta
in-natura a uma pessoa, é costume nunca entregar diretamente na mão deste, pois
isso pode provocar o rompimento da amizade no curto prazo. Para tanto,
deixam-se as pimentas em um local onde a pessoa interessada possa ser avisada
para que possa pegá-las. “Assim a amizade durará muito ...”.
Entre os Wapichana, segundo Nádia Farage em
um pronunciamento realizado na Universidade Federal de Roraima em março de
2002, as pimentas também são usadas pelos familiares dos indivíduos mortos por
ataque do “Canaimé” (figura mística). Estes colocam os frutos sobre sua
sepultura para que o mesmo não venha completar o serviço. Neste caso, o termo
“completar o serviço” possui o significado de comer, através dos animais que
lhe representam (tatu, tamanduá, etc), os restos do cadáver.
Além das pimentas domesticadas, os índios de
Roraima também utilizam outras espécies (semi-domesticadas e silvestres). A
mais interessante, e que nos chamou a atenção, foi o uso de uma pimenta
silvestre que nasce naturalmente em serras ou pé-de-serra das regiões do
centro-norte e nordeste de Roraima. Para os indígenas, estas pimentas são
plantadas em suas roças pelo “Curupira” ou “Ataí-taí”. Por causa desta crença
mística, esta pimenta recebe o nome simbólico de “Pimenta do Curupira” ou
simplesmente “pimi’ró” (pimenta pequena, na língua Macuxi). Esta espécie
silvestre é uma Capsicum chinense que posiciona Roraima como um dos centros de
dispersão desta espécie nesta região do extremo norte amazônico (ver Barbosa et
al. 2002; 2006).
O uso simbólico e medicinal da pimenta pelos
índios do lavrado (cerrado/savana) é também muito amplo. Assim como os Yanomami
da floresta, os Macuxi, Wapichana e Taurepang do lavrado também usam a malagueta
(C. frutescens) para curar oftalmia, febre e até malária. Usam-na como
disciplinadora entre as crianças, quando estas desobedecem ou fazem
mal-criação. Para tanto, os pais introduzem um fruto de pimenta malagueta, com
a ponta inferior quebrada, no ânus da criança mal-criada para que esta fique
obediente e esperta (Tuxaua Antônio, Aldeia do Contão).
Segundo relatos de alguns indígenas Macuxi
mais velhos, o ato de introduzir pimentas no ânus também servia para que os
adolescentes masculinos se tornassem bravos guerreiros, apurando sua esperteza
e corrida. Neste ritual eram usadas lâminas de pedras para se fazer cortes
superficiais nos braços, pernas e costas dos adolescentes. Em seguida, uma
pasta de macerado de folhas de “curawá” (Agave sp.), juntamente com frutos de
pimentas malagueta, era passada sobre os cortes. Segundo os velhos indígenas,
neste momento, os adolescentes corriam em volta da casa em grande velocidade e,
depois, rumo ao curso d’água mais próximo para aliviar a dor. Esse era um dos ritos
de passagem masculino mais usado pelos índios Macuxi do lavrado.
O comércio interétnico, antes da
intensificação do contato, usava as pimentas desidratadas e moídas (jiquitaia)
como forma de produto de barganha. Este fato foi sempre apontado como uma característica
forte dos indígenas da região das serras, que desciam até a região dos lavrados
para realizar negócios, trazendo, entre outras coisas, a jiquitaia para trocar
por produtos desta região de baixa altitude de Roraima (José Adalberto, índio
da Aldeia Enseada, ex-consultor da APIR – Associação dos Povos Indígenas de
Roraima).
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