sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Variedades e Usos Culturais da Pimenta em Roraima

Pimentas do gênero Capsicum cultivadas em Roraima, Amazônia brasileira. II. Hábitos e formas de uso (fragmento)
Herundino Ribeiro do NASCIMENTO FILHO1, Reinaldo Imbrozio BARBOSA2, Francisco Joaci de Freitas LUZ

OS INDÍGENAS

Dos 180 acessos de pimentas (163 de espécies domesticadas) coletados em Roraima no período de maio/2000 a junho/2001, foram identificados 78 morfotipos que se diferenciavam pela forma, cor e ardência (Barbosa et al., 2002). Destes, 23 foram observados especificamente para etnias indígenas: Wapixana (10), Macuxi (9), Patamona (1), Yanomami (1) e Yekuana (1). Nestas comunidades, os morfotipos predominantes foram malagueta (C. frutescens), murupi (C. chinense) e olho-de-peixe (C. chinense). Devido ao esforço de coleta ter sido mais intenso entre as comunidades Macuxi e Wapichana, este resultado acaba refletindo uma situação muito simplificada dos morfotipos utilizados pelas etnias locais, observando-se principalmente aquelas que vivem nas regiões de vegetação aberta denominadas regionalmente por “lavrado” - savanas/cerrados (ver Barbosa & Miranda, 2005)

A coleta de pimentas nas etnias indígenas presentes no ecossistema de florestas foi muito reduzida devido a problemas de acessibilidade. Todavia, tanto as poucas coletas que obtivemos, quanto os relatos passados, nos dão conta do uso de pimentas nestas localidades como, por exemplo, nos trabalhos de Milliken (1997) entre os Yanomami do oeste de Roraima, e Meggers (1987) nos Waiwai, do sudeste.

Por ocasião das observações nas aldeias do lavrado, foi constatado que, em sua maioria, existia a figura da “pimenteira”. Este termo denomina uma ou mais senhoras (ou famílias) que se dedicam ao cultivo, manipulação e distribuição das pimentas na aldeia e/ou região. Na maior parte das vezes, estas senhoras também se responsabilizam pelo fabrico e comercialização de molhos e pimentas desidratadas/moídas (jiquitaia). Neste caso, entenda-se comercialização como o ato de venda ou troca dentro e fora da aldeia. Não é um papel definido somente pela comunidade, entretanto, estas senhoras (pimenteiras) acabam assumindo esta figura através da leitura que a comunidade faz de seu prazer pessoal no plantio e tratos hortícolas de seu jardim doméstico.

Do ponto de vista cultural, as pimentas podem assumir diferentes formas simbólicas refletidas diretamente em sua forma de uso. Por exemplo, para os Macuxi, situados no centro-norte e nordeste de Roraima, andar no mato com fome e sem pimenta é muito perigoso, pois isto pode levá-los a ser atacados pelos espíritos das matas.

Na Aldeia Maturuca, o professor da escola indígena local (Prof. Sobral André, índio Macuxi) nos informou que naquela localidade as pimentas são usadas para fazer molhos à base de tucupi (escorrido da macaxeira), além do caldo (damorida) e da jiquitaia. A jiquitaia é geralmente preparada primariamente pela secagem da pimenta ao sol ou torrada no forno ou na pedra. Em seguida ela é moída em pilão e, na formulação atual, é adicionada uma quantidade variável de sal, muito embora antes do contato com o “... branco... ” este último ingrediente não existisse. “Também se usa pimentas para espantar os maus espíritos ou feitiços ... espíritos da natureza que nós acreditamos que fazem mal” (Prof. Sobral André, índio Macuxi).

Os benzedores (pajés) utilizam as pimentas para curar doenças que só eles possuem o poder de tirar. Os pajés Macuxi, quando “... atuados ...” (em transe), usam pimentas em seus ritos, mas não conseguem se lembrar de quais e nem de quanto usaram nas composições indicadas aos doentes quando despertam do transe.

Entre os Macuxi, ao se doar uma pimenta in-natura a uma pessoa, é costume nunca entregar diretamente na mão deste, pois isso pode provocar o rompimento da amizade no curto prazo. Para tanto, deixam-se as pimentas em um local onde a pessoa interessada possa ser avisada para que possa pegá-las. “Assim a amizade durará muito ...”.

Entre os Wapichana, segundo Nádia Farage em um pronunciamento realizado na Universidade Federal de Roraima em março de 2002, as pimentas também são usadas pelos familiares dos indivíduos mortos por ataque do “Canaimé” (figura mística). Estes colocam os frutos sobre sua sepultura para que o mesmo não venha completar o serviço. Neste caso, o termo “completar o serviço” possui o significado de comer, através dos animais que lhe representam (tatu, tamanduá, etc), os restos do cadáver.

Além das pimentas domesticadas, os índios de Roraima também utilizam outras espécies (semi-domesticadas e silvestres). A mais interessante, e que nos chamou a atenção, foi o uso de uma pimenta silvestre que nasce naturalmente em serras ou pé-de-serra das regiões do centro-norte e nordeste de Roraima. Para os indígenas, estas pimentas são plantadas em suas roças pelo “Curupira” ou “Ataí-taí”. Por causa desta crença mística, esta pimenta recebe o nome simbólico de “Pimenta do Curupira” ou simplesmente “pimi’ró” (pimenta pequena, na língua Macuxi). Esta espécie silvestre é uma Capsicum chinense que posiciona Roraima como um dos centros de dispersão desta espécie nesta região do extremo norte amazônico (ver Barbosa et al. 2002; 2006).

O uso simbólico e medicinal da pimenta pelos índios do lavrado (cerrado/savana) é também muito amplo. Assim como os Yanomami da floresta, os Macuxi, Wapichana e Taurepang do lavrado também usam a malagueta (C. frutescens) para curar oftalmia, febre e até malária. Usam-na como disciplinadora entre as crianças, quando estas desobedecem ou fazem mal-criação. Para tanto, os pais introduzem um fruto de pimenta malagueta, com a ponta inferior quebrada, no ânus da criança mal-criada para que esta fique obediente e esperta (Tuxaua Antônio, Aldeia do Contão).

Segundo relatos de alguns indígenas Macuxi mais velhos, o ato de introduzir pimentas no ânus também servia para que os adolescentes masculinos se tornassem bravos guerreiros, apurando sua esperteza e corrida. Neste ritual eram usadas lâminas de pedras para se fazer cortes superficiais nos braços, pernas e costas dos adolescentes. Em seguida, uma pasta de macerado de folhas de “curawá” (Agave sp.), juntamente com frutos de pimentas malagueta, era passada sobre os cortes. Segundo os velhos indígenas, neste momento, os adolescentes corriam em volta da casa em grande velocidade e, depois, rumo ao curso d’água mais próximo para aliviar a dor. Esse era um dos ritos de passagem masculino mais usado pelos índios Macuxi do lavrado.

O comércio interétnico, antes da intensificação do contato, usava as pimentas desidratadas e moídas (jiquitaia) como forma de produto de barganha. Este fato foi sempre apontado como uma característica forte dos indígenas da região das serras, que desciam até a região dos lavrados para realizar negócios, trazendo, entre outras coisas, a jiquitaia para trocar por produtos desta região de baixa altitude de Roraima (José Adalberto, índio da Aldeia Enseada, ex-consultor da APIR – Associação dos Povos Indígenas de Roraima).


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