terça-feira, 20 de março de 2012

Cidade Pomar


Boa Vista é como um viveiro de pássaros. Canários, pardais, bem-te-vis, maritacas e outros que não sei o nome, de cores e cantos variados. Como se todos os pássaros do lavrado viessem se refugiar nesse oásis, lugar onde todos os quintais têm pomares, onde os cajus e os jambos dão nas ruas, tanto ao ponto de perder, de sobrar, de alimentar gentes e passarinhos. 

Que são muitos, e que preenchem o som da cidade com seus cantos, que não dão oportunidade para intervalos de silêncio. A não ser à noite: quietude.

Mas que frutas são essas? Que cidade é essa? Capital de Estado que manteve seus terreiros, suas frutas e pássaros? Que espalham nas ruas pós, sons e aromas. Quais são nativas? (frutas). Quais são nativos? (pássaros). Quais foram introduzidos pela cultura e gosto dos que pra aqui vieram? Como se deu a composição do que aqui existia com o que veio de longe, transformando Boa Vista neste pomar? Chamariz de aves. 


terça-feira, 6 de março de 2012

Pia daktai - um “tempo de origem”

No elenco dos gêneros orais taurepang, as narrativas pessoais, assim como os mitos que tematizam as façanhas do herói criador Makunaíma, recebem o qualificativo de pandon, termo traduzido pelos Taurepang como “histórias”.

Os acontecimentos narrados nos mitos ocorrem em um tempo que os Taurepang chamam de Pia daktai, um “tempo de origem”, quando a terra, os homens e os animais assumem a forma que até hoje possuem, ao passo que as narrativas de cada um a respeito da sua vida e de seus pais teria acontecido “agora”, sereware, indicando tratar-se de acontecimentos muito mais recentes do que o ocorrido no Pia daktai.

A passagem de um tipo de relato a outro não obedece qualquer regra formal: nada impede que um informante passe do relato a respeito das peripécias de Makunaíma pela região do monte Roraima a um outro a respeito de uma aldeia situada na mesma área no tempo de sua juventude. Temos assim uma espécie de compressão do tempo à medida que a narrativa se aproxima do presente, um período mais repleto de detalhes e lembranças.

Makunaima
O ciclo mais importante da mitologia taurepang versa sobre a saga do herói cultural Makunaima, ora referido como uma só personagem, ora como um grupo de irmãos, como no relato colhido pelo padre C. de Armellada (1964:32ss). No “tempo da origem”, homens e animais possuíam a forma humana, pemon-pe. Compartilhando com os demais seres da terra uma existência pré-social, os irmãos Makunaima – nascidos da união do sol, Wei, com uma mulher feita de barro – perambulavam à procura do pai, que havia sido raptado pelos Mawari, espíritos malfeitores que habitam o interior das serras. É na região do monte Roraima que encontram novamente o pai cativo, que, uma vez livre de seus raptores, sobe ao céu, abandonando seus filhos na terra.

Os irmãos Makunaima permanecem na região do monte Roraima a vagar, seguindo alguns animais – entre os quais a cotia, akuri – a procura de comida. São esses animais que indicam ao herói a “árvore do mundo”, o wasaka, de onde retiravam todos os frutos comestíveis. Extasiado com a abundância dessa árvore, Makunaima, em um ato de avidez desmedida, a derruba. Do que restou do tronco jorrou muita água, o que veio a provocar uma grande inundação; ao dilúvio, sucede-se um grande incêndio, que destrói os homens e os animais. Após este cataclisma, Makunaima faz novos homens e novos animais com barro, dando-lhes vida (Koch-Grunberg, 1924/1981, II:43; Armellada, 1964:60). O Monte Roraima, contam os Taurepang, seria a raiz desta árvore que permaneceu após a grande inundação, apontando para sua forma, apesar das grandes proporções, semelhante a um tronco partido.

Este é o episódio mais comumente apontado entre as façanhas de Makunaima. Em diversas outras, o herói transforma os vários seres com que se depara em rochas. Ao final, Makunaima parte em direção a leste, para o outro lado do monte Roraima, deixando para trás um mundo onde permanecem cristalizadas, principalmente nas formações rochosas do território taurepang, diversos de seus feitos. Depois disso Makunaima não mais intervém entre os homens, deixando-lhes, porém, uma triste herança: o mundo a que ficam relegados já não possui a mesma natureza daquele em que se vivia antes do corte da grande árvore; os seres de “agora”, sereware, perderam a identidade que outrora possuíam, já não são todos Pemon. A alteridade é, assim, introduzida no mundo.Se antes todas as coisas eram gente, pemon-pe to ichipue, após a grande inundação os vários personagens que aparecem nos pandon distanciar-se-ão dos homens, localizando-se em domínios específicos e engendrando novas relações com os seres humanos, as quais estarão revestidas de um antagonismo explícito.


Fonte: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/taurepang/117